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Desconto em multas ambientais: direito adquirido ou justiça ambiental?

Recentemente, uma controvérsia emergiu em torno da aplicação dos percentuais de desconto sobre multas administrativas, especialmente no contexto de mudanças legislativas que reduziram consideravelmente esses percentuais.

Publicado 08/11/2024 - 06:26 e atualizado 08/11/2024 - 06:35
Por: MARCELO CAETANO VACCHIANO
Nos últimos anos, temos assistido a um crescente debate sobre a concessão de descontos em multas ambientais, uma questão que toca o cerne da proteção do meio ambiente e da eficácia das sanções administrativas. Recentemente, uma controvérsia emergiu em torno da aplicação dos percentuais de desconto sobre multas administrativas, especialmente no contexto de mudanças legislativas que reduziram consideravelmente esses percentuais.
 
A questão principal é: quem protocolou um pedido de conciliação enquanto vigorava a regra do Decreto Estadual nº 1.436/2022, que previa descontos de até 90% para infrações envolvendo desmatamentos e crimes ambientais, tem direito adquirido a esses percentuais, mesmo que a decisão administrativa tenha ocorrido após a entrada em vigor do Decreto Estadual nº 275/2023, que reduziu os descontos para 60%? A resposta para essa pergunta não é simples e envolve uma série de princípios fundamentais do direito administrativo e ambiental.
 
Com o objetivo de estimular a célere recuperação ambiental mediante a regularização dos passivos identificados por ocasião da fiscalização e imposição de auto de infração ambiental, o legislador estadual trouxe o estímulo consistente na aplicação de descontos no valor da multa administrativa aplicada quando instituiu, no Código Estadual Ambiental, o Programa de Conversão de Multas Ambientais com redução de até 90% (noventa por cento) da multa simples (art. 127 da Lei Complementar nº 38/1995).
 
O Decreto Estadual nº 1.436/2022 trata do processo administrativo estadual de apuração das infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, regulamenta o Programa de Conversão de Multas Ambientais em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.
 
Com relação à aplicação de descontos sobre multas ambientais, o Decreto estabelece diferentes percentuais de desconto dependendo do momento em que o requerimento é feito: 60% se apresentado na manifestação de interesse, 50% antes da decisão de primeira instância, e 40% antes da decisão de segunda instância. E isso tem alguns motivos, dentre os quais pode-se ressaltar a economia processual e celeridade na recuperação do dano ambiental, já que o objetivo do programa é justamente essa recuperação porque, mesmo com a concessão dos descontos, o autuado tem a obrigação de reparar integralmente o dano ambiental causado. Isso reforça a ideia de que o programa não compromete a responsabilidade ambiental, garantindo que o objetivo principal da legislação ambiental — a recuperação e preservação do meio ambiente — seja plenamente atendido, independentemente dos benefícios financeiros oferecidos como incentivo à conciliação.
 
O artigo também prevê descontos maiores (de até 90%) para infrações que não envolvam exploração florestal, supressão de vegetação nativa ou crimes ambientais. Nestes casos o máximo do desconto varia de 60% até 40%, de acordo com o momento em que for requerida a participação no referido programa ambiental. Descontos menores por se tratar de infrações mais graves, inclusive por questões relacionadas às mudanças climáticas e compromissos voluntariamente assumidos pelo Estado de Mato Grosso em fóruns e eventos climáticos nacionais e internacionais.
 
Com efeito, devido à sua vasta área florestal, abrangendo o bioma amazônico, o cerrado e o pantanal, Mato Grosso desempenha um papel crucial na preservação ambiental e no combate às mudanças climáticas.
 
Durante eventos climáticos como a Conferência das Partes da Convenção -Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP), o Estado tem reafirmado compromissos importantes, como a redução das emissões de gases de efeito estufa, o combate ao desmatamento ilegal e a promoção de uma economia sustentável. Mato Grosso também integra iniciativas como a "Produzir, Conservar e Incluir" (PCI), que visa o desenvolvimento econômico aliado à conservação ambiental e à inclusão social.
 
Esses compromissos são essenciais para promover a sustentabilidade e a proteção de ecossistemas frágeis, ao mesmo tempo em que reforçam a necessidade de práticas que integrem preservação ambiental e desenvolvimento econômico. A participação de Mato Grosso em eventos climáticos é uma demonstração de seu esforço para alinhar políticas públicas às metas globais de enfrentamento das mudanças climáticas, incluindo compromissos com a redução do desmatamento e a implementação de práticas agrícolas mais sustentáveis.
 
Esses compromissos também visam atender às metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, como o ODS 13 (Ação Contra a Mudança Global do Clima), o ODS 15 (Vida Terrestre) e o ODS 16 (Instituições Eficazes), promovendo um equilíbrio entre o crescimento econômico e a preservação ambiental para garantir um futuro sustentável.
 
É nesse contexto que surge a discussão sobre a existência de um direito adquirido a descontos de até 90% para infratores que desmataram ilegalmente e, ao tentar se regularizar, protocolaram um pedido de conciliação durante a vigência da regra que permitia tais descontos. Em 9 de maio de 2023, no entanto, foi editado o Decreto Estadual nº 275/2023, que reduziu os percentuais de desconto para 60%, gerando questionamentos sobre a aplicabilidade das normas e o alcance do direito adquirido nesses casos.
 
Primeiramente, precisamos entender o conceito de "direito adquirido". A Constituição Federal protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. No entanto, para que um direito seja efetivamente adquirido, ele deve estar completamente incorporado ao patrimônio jurídico do titular, de forma plena e irrevogável, com o cumprimento de todos os requisitos legais. No caso em análise, o mero protocolo de um pedido de conciliação não é suficiente para consolidar um direito adquirido. Isso se traduz em uma mera expectativa de direito, que está sujeita a alterações legislativas e trâmites administrativos até que se realize a Audiência de Conciliação, que é um ato eminentemente negocial. Após o protocolo do pedido são realizadas as tratativas entre órgão ambiental e autuado, podendo contar com a participação do Ministério Público, Polícia Judiciária Civil e Procuradoria Geral do Estado. Segue-se as análises de documentos, propostas de intervenções no ambiente degradado e definição dos termos do acordo. Havendo consenso, firma-se um Termo de Compromisso Ambiental, no qual são estabelecidas todas as condições para recuperação do bem lesado e pagamento da multa.
 
O princípio da legalidade, que rege toda a administração pública, estabelece que os atos administrativos devem ser realizados conforme a legislação vigente no momento da decisão, e não com base na legislação anterior que possa ter sido mais favorável. Portanto, o reconhecimento de descontos de 90% sem uma decisão administrativa consolidada vai de encontro a esse princípio.
 
Outro ponto crucial é a questão da isonomia. Se aceitássemos que alguns infratores ambientais têm direito ao desconto de 90% enquanto outros, em situações idênticas, teriam apenas 60%, estaríamos tratando os iguais de forma desigual, violando o princípio da equidade. A administração pública deve atuar de maneira imparcial e igualitária, garantindo que todos os cidadãos sejam tratados com o mesmo rigor e com os mesmos direitos, especialmente em questões que afetam o interesse coletivo, como a proteção ambiental.
 
Mais ainda, é preciso considerar o papel das sanções ambientais. Elas não têm apenas uma função punitiva, mas também uma função pedagógica. A aplicação de multas com descontos exageradamente generosos enfraquece o caráter preventivo das normas ambientais, desincentivando comportamentos responsáveis. Um desconto de 90% representaria, na prática, uma quase anistia, o que comprometeria a eficácia das penalidades e enviaria a mensagem errada para a sociedade. Precisamos de uma abordagem que reforce o compromisso com a proteção ambiental e que leve a sério as infrações contra o meio ambiente.
 
A legislação ambiental deve ser interpretada com responsabilidade, levando em conta princípios como a equidade intergeracional, que nos lembra da importância de proteger os direitos das futuras gerações. Além disso, é fundamental que a administração pública atue de forma transparente, eficaz e comprometida com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 16, que promove a paz, justiça e a construção de instituições eficazes.
 
Por fim, é essencial reconhecer que a administração pública tem uma certa discricionariedade na condução dos processos de conciliação, mas essa discricionariedade é limitada pelos princípios da legalidade, moralidade, eficiência e, principalmente, o interesse público. A conciliação é um mecanismo valioso para resolver conflitos de forma célere e eficaz, mas deve ser utilizada de maneira justa e conforme a legislação vigente.
 
A análise da questão à luz da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), anteriormente conhecida como Lei de Introdução ao Código Civil, também é fundamental para entender a aplicação das normas em situações de transição legislativa. O artigo 6º da LINDB estabelece que a lei nova possui efeito imediato e geral, respeitando apenas o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Para que se possa alegar um direito adquirido, este deve estar plenamente constituído e definitivamente incorporado ao patrimônio do interessado, conforme salientado alhures, o que não ocorre com um simples pedido de conciliação ainda não decidido pela administração. Dessa forma, como a administração pública tem o dever de aplicar a legislação vigente no momento da decisão, a nova lei que reduziu os percentuais de desconto deve ser observada, garantindo a aplicação do princípio da legalidade e assegurando que uma expectativa de direito não seja equivocadamente tratada como um direito adquirido.
 
Não se admite a teoria do fato consumado nem existe direito adquirido contra o meio ambiente (STJ, AgInt no AREsp 2573270 / SC), uma vez que a proteção ambiental é um princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal, que prioriza o interesse coletivo e o equilíbrio ecológico sobre interesses individuais. A legislação ambiental tem caráter dinâmico e pode ser ajustada para responder de forma mais eficaz às necessidades de preservação ambiental, visando proteger as presentes e futuras gerações. Assim, benefícios ou concessões que possam comprometer o meio ambiente não se consolidam como direitos adquiridos, pois o dever de proteger e restaurar o patrimônio ambiental prevalece sobre qualquer pretensão que possa prejudicar o interesse público e o desenvolvimento sustentável.
 
Diante de tudo isso, mesmo que o interessado tenha protocolado requerimento de inclusão no Programa de Conversão de Multas Ambientais quando vigente a possibilidade de redução de até 90% do valor da multa em casos de exploração florestal ou crimes ambientais, o desconto máximo de 60% previsto no Decreto Estadual nº 275/2023 deve ser aplicado, pois reflete a necessidade de manter o equilíbrio entre o direito dos administrados e o dever de proteger o meio ambiente. A aplicação uniforme da lei é a melhor forma de garantir que a justiça ambiental prevaleça, respeitando tanto os princípios jurídicos quanto os imperativos éticos de nossa responsabilidade com o planeta.
 
* Marcelo Caetano Vacchiano é promotor de Justiça em Mato Grosso


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